“Neste livro, Milton Hatoum traz a história de dois irmãos gêmeos - Yaqub e Omar - e suas relações com a mãe, o pai e a irmã. Moram na mesma casa Domingas, empregada da família e seu filho, um menino cuja infância é moldada justamente por esta condição: ser o filho da empregada.
Dois Irmãos é o relato de como se constroem as relações de identidade e diferença nessa casa. Mas o lugar da família se estende ao espaço de Manaus, o porto à margem do rio Negro: a cidade e o rio, metáforas das ruínas e da passagem do tempo, acompanham o andamento do drama familiar.
O narrador busca descobrir quem é seu pai entre os homens da casa, entre os restos de outras histórias. Tenta reconstruir os cacos do passado, ora como testemunha, ora como quem ouviu e guardou, mudo, os segredos dos outros. Do seu canto, ele vê personagens que se entregam ao incesto, à vingança, à paixão desmensurada. Num jogo de inventar a memória, tenta transformá-la em ponto de convergência do passado. Sua fala nos mostra Halim, o pai, sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares: a desmedida dedicação de sua mulher ao filho preferido, Omar; o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi levado a se separar da família; a relação amorosa entre Rânia e seus irmãos. De Domingas, o que ele nos diz é que esta é uma mulher que não fez escolhas.
Em Dois Irmãos os conflitos são alimentados pela rede de interditos do interior da família, e somente quando se passaram mais de trinta anos, quando quase todos já estão mortos, é que o narrador parece motivado a olhar para eles. Mas o relato que escreve - se é corroído pela dúvida e se dá todos os sinais de empenho em descobrir uma verdade qualquer - não parece amenizar o silêncio que o habita.
O romance de Milton Hatoum impressiona pela verticalidade e delicadeza na composição do enredo e dos personagens. Há um jogo minucioso com a linguagem cujo resultado é a impossibilidade de estabelecer um sentido prévio à narrativa. Esse sentido será, aos poucos, construído pela própria leitura.
Tem drama familiar e gente problemática? Estamos lendo e assistindo.
Em 2017 a Rede Globo transmitiu uma minissérie baseada no livro Dois Irmãos com a Juliana Paes e Eliane Giardini, interpretando a mãe, Zana; Antônio Calloni e Antônio Fagundes como Halim, o pai; Cauã Reymond como os irmãos gêmeos Yaqub e Omar e com muito mais gente famosa no elenco, a série me chamou a atenção mesmo tendo assistido a poucos capítulos, devido ao horário em que era exibida.
Quando descubro que uma série ou filme é inspirado em um livro, os bichinhos da curiosidade já ficam atiçados. Demorou um tempo, só em 2019, em uma visita à livraria Zaccara em São Paulo que encontrei a obra por acaso e, como queria levar uma lembrança do local, aproveitei.
A minha edição vem com a capa original e uma sobrecapa com a cara da série. Essa, com certeza, bem atrativa para o pessoal que conhece a série e está passando distraído entre as prateleiras.
Bom, como comentei no início desse texto, sou bem chegada em histórias que envolvem dramas e em observar os comportamentos dos personagens. A sinopse de Dois Irmãos já nos traz uma boa prévia do que temos pela frente.
O conflito entre Yaqub e Omar vem desde a infância e a preferência e os mimos da mãe já são bem direcionados. Tudo isso só aumenta com a distância deles na adolescência e na vida adulta não é diferente.
O que torna tudo mais interessante é que o autor contextualiza a obra no tempo e espaço do Brasil, passamos pelos períodos do nosso país, com o recorte da região Norte, pois a história se passa em Manaus, a ditadura militar foi um período bastante significativo na história de Omar e o desenvolvimento do sudeste, foi campo essencial para o crescimento de Yaqub.
O narrador da obra é mais jovem do que os irmãos e nos passa tudo o que viu, viveu e ouviu falar sobre a história daquela família extremamente intensa. Fiquei durante toda a leitura muito ligada ao que se passava e com a constante curiosidade em saber tudo o que permeava aquelas vidas.
É muito difícil de acreditar que essa obra não foi baseada em pessoas específicas, pois são tão reais e surpreendentes as situações que só a vida real nos traria tamanha mistura de sentimentos como amor, raiva, inveja, admiração tudo tão mal canalizado, bem do jeitinho que a gente é.
Dois Irmãos mexeu comigo, despertou sentimentos e reflexões bem profundas, sobre o lugar das pessoas na sociedade, escolhas, e como algumas pessoas são simplesmente marginalizadas e diminuídas ao papel que ocupam ao servir os outros. A história de Domingas me comoveu demais e realmente queria que ela tivesse tido a oportunidade de ter uma vida melhor. E quantas não passam por tudo isso ainda hoje?
Obras que me levam tão fundo ficam marcadas por muito tempo. Fui do amor à indignação, da empatia á incompreensão em um pequeno intervalo de páginas. Leitura extremamente relevante para quem gosta de comungar de verdade com as obras que lê.
Milton Hatoum (Manaus, Amazonas, 1952). Romancista, contista, professor e tradutor. Destaca-se por retratar conflitos pessoais e familiares no contexto geográfico, histórico e sociocultural da Amazônia, inspirando-se em sua vivência como descendente de libaneses e como migrante pelo Brasil.
Muda-se para Brasília em 1967 e lá permanece até 1970, quando vai para São Paulo. Diploma-se arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e, ainda nesta cidade, trabalha como jornalista e professor.
No início da década de 1980, viaja para a Europa e estuda literatura comparada na Sorbonne Université. De volta ao Brasil, leciona literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), entre 1984 e 1999.
Um dos procedimentos centrais na construção dos romances de Hatoum é a fusão entre o social e o existencial: trata das histórias particulares de certos personagens sem descuidar da observação do contexto social e histórico em que eles vivem. Esse contexto envolve quase sempre o processo de integração dos imigrantes originários do Oriente Médio no Norte do Brasil e as repercussões da ditadura militar brasileira naquela região.
A tendência a incluir acontecimentos históricos na ficção decorre do fato de Hatoum ser um escritor de uma minoria (como os libaneses no Brasil), o que o impele a registrar "a voz dos esquecidos: vozes do passado soterradas em um espaço problemático marcado por tentativas de assimilação".
Estilisticamente, a prosa de Hatoum varia pouco de livro a livro (o que denota a unidade interna de sua obra), sendo construída com base em narradores que optam sempre por um tom informal, fluente e coloquial. Além de "econômico", o estilo de Hatoum é "ao mesmo tempo poético, cheio de figurações e estranhamentos”.
O real e o fantasiado se emaranham na escrita devido à abundância e detalhamento das descrições. Para o autor, "ninguém escreve do nada. As coisas que escrevemos são resultado das nossas experiências. A vivência é importante para a voz do escritor. Não dá para escrever sem a experiência de vida. É por meio dela que os autores encontram sua voz", diz, na mesa da qual participa na Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), em 2016.
Mesclando elementos de suas memórias e experiências pessoais com o contexto sociocultural amazônico, Hatoum constrói narrativas complexas, que promovem reflexão sobre relações familiares e seus conflitos, miscigenação e relação entre culturas, colocando em discussão, por consequência, a tolerância ou intolerância ao outro.
Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa7721/milton-hatoum
E para quem é chegado em um vídeo, fica a dica dessa entrevista do Dr. Drauzio Varella com o autor Milton Hatoum:
Dois Irmãos - Milton Hatoum - 198 páginas - Editora Companhia das Letras